terça-feira, 20 de dezembro de 2011
CONTO: AS SEMENTES
Isabela rolava a sementinha vermelha de um lado a outro da palma da mão, enquanto Rodrigo espiava pela janela.
Seus companheiros de viagem haviam desaparecido e a ansiedade só aumentava. Eram quatro casais ao todo, escondidos naquela casinha bucólica em um sítio à beira da rodovia.
Os raios de luz oriundos da lampada incandescente empoeirada ricocheteavam nas paredes mal rebocadas igualmente amareladas pela passagem dos anos, formando sombras e desenhos estranhos. Os móveis também estavam cobertos de pó, os estofados encardidos, algumas cortinas rasgadas, outras remendadas.
Provavelmente havia muitos anos que o ou a proprietária se fora e mais ninguém havia habitado aquela casa. Certamente a antiga dona tinha um gosto peculiar para as coisas. Tudo era antiquado, ou barroco, ou de feitio delicado. Flores, brocados, torneados, babados e rendas, entalhes, tudo parecia ter sido cuidadosamente calculado para dar um ar de requinte antiquado ao local.
A sementinha vermelha caiu ao chão enquanto Isabela analisava tudo isso, distraída.
Rodrigo deu a volta no sofá e foi até a porta dos fundos. Chamou por alguns nomes mas ninguém respondeu.
- É loucura sair daqui. - ele voltou e sentou-se no sofá. - Não tem pra onde fugir. Aqui pelo menos estamos mais seguros.
Isabela o encarou e suspirou. Não entendia porque estar dentro daquela casinha velha os tornaria diferentes dos outros, para estarem mais seguros.
- Quem é que vai vir aqui atrás da gente? - ele lançou a ela um olhar entre esperançoso e suplicante.
- Seria melhor então se apagássemos as luzes.
- Verdade... - Rodrigo correu apagar a luz da sala. Não fazia muita diferença àquela hora da tarde estar ou não com as luzes acesas.
Ouviram um barulho nos fundos da casa. Rodrigo e Isabela ficaram paralisados por instantes, até que Marcelo e Esmeralda apareceram sorrateiramente na sala, como se estivessem se escondendo de alguma coisa.
Isabela os reconheceu devido à luz esparsa do final da tarde, que penetrava timidamente através das cortinas pesadas e encardidas.
- Onde estão os outros? - Isabela perguntou ao casal recém-chegado, que ainda estava de mãos dadas.
- Fugiram, Emanuela e Thiago seguiram ao largo da rodovia. A Suzane e o Nivaldo brigaram e decidiram fugir pelo mato mesmo.
- Mas eles nem encontraram a sementinha vermelha...
- Encontraram sim, no momento em que pularam a cerca.
- Sério? - Isabela perguntou, surpresa. Rodrigo permanecia emudecido.
- Todo mundo vai encontrar mesmo, não tem escapatória! - Esmeralda desabou sobre o sofá, levantando uma discreta nuvem de poeira.
- E as mensagens... - quis saber Isabela, esperançosa.
- Não sabemos. - disse Marcelo.
- Provavelmente vão recebe-las pelo caminho.
- Droga... - Rodrigo sussurrou consigo mesmo. - Droga! - ele exclamou mais alto. - Vocês não veem o absurdo que é isso tudo? É simplesmente ridículo.
Isabela perdeu a paciencia e elevou o tom de voz:
- Você não está vendo que está acontecendo de verdade? - Ela gesticulava, nervosa. - Todo mundo está recebendo, quais provas você ainda quer pra acreditar que essa merda está realmente acontecendo????
As sementes, as mensagens, as mortes, tudo, tudo está acontecendo de verdade!!!!! Nós fomos avisados, fomos avisados e não demos ouvidos. Mas são muitas coincidencias Rodrigo, pelo amor de Deus!!!
- Mas isso é surreal, p*****!!!!!!!!!!! - gritou Rodrigo, praticamente cuspindo as palavras na cara de Isabela, saindo em seguida pelo corredor e pela porta dos fundos.
Isabela ficou observando ele ir embora. Já havia se recomposto após ouvir o grito do namorado, e agora o observava de maneira apática. Não foi atrás, pois sabia que ele não iria longe. Também não ficou magoada, pois não era do seu feitio se aborrecer por nada. Tinha plena consciencia de que ela mesma havia começado a gritar, despertando a ira do namorado. Mas ela podia muito bem compreender que ele estivesse mais estressado do que os outros dentro daquela casa. A semente vermelha com a qual ela brincava era dele.
Todos ficaram paralisados de repente ao ouvir o grande estrondo que vinha lá de fora. Se entreolharam por alguns instantes e Marcelo voltou correndo de lá de fora. Depois do primeiro estrondo veio mais outro, e mais outro. Pareciam coisas grandes e pesadas se quebrando.
Até que os vidros da janela estouraram devido a uma grande pressão que se seguiu a uma explosão, e todos se jogaram pelo chão.
Isabela correu para as cortinas, que agora estavam esvoaçando devido à ausencia dos vidros da janela, para espiar o que havia acontecido. Lá longe, na rodovia, havia fogo e sinais de uma grande confusão. Podia ouvir choro, lamentos, gritos. Ajoelhou-se para se acomodar e observar melhor. Seu joelho doeu, e ela se lembrou da sementinha de Rodrigo. Tirou o joelho de cima, e já não havia mais uma, porém duas sementinhas. Sem se alarmar demais, ou alarmar os outros, guardou as sementinhas no bolso.
- É um acidente... - Rodrigo quase murmurava, perplexo.
Esmeralda e Marcelo saíram correndo de mãos dadas, apavorados, sem nem dizer adeus, para os fundos da casa. Isabela e Rodrigo ficaram observando o fogo ardendo ao longe e a fumaça. Não fora um simples acidente, mas um engavetamento muito sério. Rodrigo, seguindo seus instintos, puxou Isabela pela mão e saíram pela porta da frente em direção à rodovia.
- Você tem certeza? - Isabela disse a ele, deixando-se levar pelo caminho.
Rodrigo não olhou para trás e nem respondeu. Foram se aproximando do acidente e constatando que o caos era maior do que imaginavam a cada passo dado. Havia carros pegando fogo devido a um caminhão de combustível que havia se metido no meio do engavetamento. Vidros e corpos quebrados por toda parte. Pessoas ensanguentadas chorando ou pedindo socorro.
Não havia meios de saber como tudo aquilo começou. Era apenas caos e morte, amontoados um por cima do outro. Rodrigo soltou da mão de Isabela e correu ajudar umas pessoas a saírem do carro destroçado. Isabela ficou parada olhando, estava paralisada, nunca havia visto nada igual àquilo. Não sabia se corria ajudar as pessoas ou se fugia dali. Na verdade não via motivos para ajudar ninguém, todos iriam morrer mesmo. Resolveu que iria ficar parada, assistindo ao terrível espetáculo, esperando.
Rodrigo a chamou pedindo para ajudá-lo a tirar uma pessoa que ficara presa no cinto de segurança. Ela parecia poder se mover, mas não conseguia soltar o cinto que ficou repuxado sem dar espaço para ela se desvencilhar. Parecia estar puxando Rodrigo para mais perto, tentando dizer alguma coisa a ele. Assim que Isabela deu o primeiro passo na direção de Rodrigo, viu-o ser atropelado e arremessado longe por um carro que vinha pelo lado esquerdo, em altíssima velocidade.
Aparentemente o motorista não havia percebido o engavetamento, e acabou juntando-se a ele. Com a violencia, o corpo de Rodrigo foi parar junto ao fogo da explosão. Nada de gritos, provavelmente ele morrera na hora, pensou Isabela. Ela nem teve tempo de esboçar reação ou emoção pela morte do namorado. Uma mulher sem uma das pernas veio rastejando em sua direção, e agarrou o seu tornozelo.
Isabela afastou-se instintivamente com o susto, mas ao ver a situação da mulher, acabou se aproximando para ajudá-la. A mulher agarrou-se a Isabela e colou os lábios em seus ouvidos. Isabela tentou se desvencilhar do estranho abraço mas não teve tempo. Apenas pode ouvir a mulher dizendo:
- Vinte e um de dezembro de dois mil e doze, às dezessete e quinze, uma explosão...
Isabela levantou-se depressa, largando o corpo já sem vida da mulher no chão. Tentou visualizar a hora no seu relógio de pulso, mas o fogo e a confusão ao redor a cegavam e confundiam. Correu alguns metros, aproximando-se perigosamente de alguns carros em chamas, com seus passageiros ainda dentro, queimando lentamente. Olhou ansiosa para o relógio de pulso. Marcava dezessete horas, quatorze minutos e cinquenta e oito segundos.
MARIE JO CANTUARIA
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